sexta-feira, 23 de abril de 2010

Gulliver

Numa adaptação televisiva das suas viagens (adaptação de 1996), Gulliver, ao voltar a Inglaterra, ao voltar para a sua realidade, enlouquecido pelas viagens, lunático, demente, conta ter estado em terra de anões e gigantes, visto uma ilha flutuante e conhecido cavalos inteligentes com os quais bastante conversou. (Se indico, bem no início do parágrafo, que se trata de uma adaptação televisiva, não é para dizer, obviamente, que os anões, os gigantes, a ilha flutuante e os cavalos inteligentes não fazem parte do romance de Jonathan Swift, mas que na versão original, ao voltar a Inglaterra depois de uma escala em Lisboa, Gulliver não é considerado louco e muito menos lhe é necessário provar as suas histórias para não ser internado num manicómio.) Geralmente considerado como um romance satírico, As viagens de Gulliver pode muito bem ser visto como um romance ontológico que quer responder a seguinte pergunta: a realidade define aquilo que somos?

Como transformar um romance dito satírico num romance ontológico? Transformar? Isso sequer faz algum sentido? E há alguma necessidade? Eis a beleza deste romance: com o tempo (ou seja com o esquecimento), ele responde duas vezes à sua pergunta:

1) Nada mais desapropriado do que perguntar ao Gulliver depois das suas viagens e da sua ilibação (na adaptação televisiva) se a realidade define aquilo que somos. Se eu tivesse o privilégio de ter feito estas viagens e a cómica oportunidade para responder a esta pergunta, com o merecido sarcasmo responderia que

– Tudo depende do seu ponto de vista…

Gigante na primeira ilha, criatura minúscula na segunda, intelectualmente inferior na companhia dos cavalos inteligentes e depois considerado louco na sua própria realidade (ponto importante ao qual já voltaremos), como continuar a negar que a realidade não tem um grande poder na determinação do nosso ser (seja o que isso for) e que este lhe é, por consequente, directamente relacionado? Muitos podem agora dizer que um erro crucial está a ser cometido: gigante? criatura minúscula? intelectualmente inferior? não é o contrário? não são os habitantes destas ilhas que são minúsculos, gigantes e os cavalos intelectualmente superiores? Sim. Mas, nada mais relativo do que uma realidade: construídas pela visão do mundo alcançável à mente e ao olhar, nelas a maior quantidade transforma-se irremediavelmente na normalidade. O choque entre duas normalidades diferentes tem de ser entendido pela relatividade das suas construções. Não se trata de um erro, bem pelo contrário, trata-se de uma confirmação.

2) Escrito em 1721 (publicado com modificações e censuras do editor em 1726 e na integra em 1735), As viagens de Gulliver é, sem qualquer dúvida, para a sua época, um romance satírico. Se ele não fosse, porque se dar o trabalho de o modificar e censurar? É inegável: crítica da sociedade inglesa (comparando-a à sociedade dos lilliputianos, os pequenos habitantes de Lilliput); crítica das guerras entre a Inglaterra e a França (com a guerra entre Lilliput e Blefuscu originada pela discórdia entre a forma de se partir um ovo à la coque); crítica da filosofia, da especulação e dos cientistas (com o episódio da ilha voadora); etc. e etc. Passados quase 300 anos da sua publicação, lido três séculos depois, o que resta da sátira deste romance? Com conhecimento de causa e com bastante esforço pode ser possível, ainda hoje, relacionar e construir metáforas entre o que Gulliver presenciou nas suas viagens e as nossas realidades. Mas se desconhecermos o passado desta obra, o seu contexto social de origem e a dimensão histórica em que foi escrita, como ver nestas viagens mais do que uma moralidade ou, como se está aqui a defender, uma inquirição ontológica? Se as viagens de Gulliver através as diferentes ilhas mostram que a realidade tem um grande impacto na definição do que somos, a viagem desta obra através o tempo faz exactamente o mesmo realçando o poder do envolvente sobre o envolvido e respondendo uma segunda vez à sua própria pergunta.

O regresso a Inglaterra (continuando na adaptação televisiva) transforma-se para Gulliver na última etapa do seu périplo, na confrontação final entre uma realidade e o seu desconhecido, entre um homem são e um homem louco. Contadas as suas viagens, elas não passam dos delírios de um náufrago.

O que reivindica Gulliver? Um inexistente ou um desconhecido? Para quem o ouve, nada indica nos seus relatos a possibilidade de existência necessária para a criação de um desconhecido. O desconhecido é um acto que subentende a não inexistência do que se determina como não fazendo parte da nossa realidade. Este acto, uma tomada de posição, uma afirmação, subentende o conhecimento, intuitivo ou explícito, da noção de realidade (a visão do mundo criada por aquilo que alcançamos dele fisicamente e intelectualmente) para transformar o que é para a realidade inexistente no que é apenas desconhecido. Esta transformação pode ocorrer de diferentes maneiras: grande parte das vezes com a apresentação de uma prova (matemática, lógica, física, etc.); outras vezes graças a um mecanismo incerto: a fé.
Nesta adaptação televisiva, é apenas quando uma ovelha minúscula da ilha de Lilliput é apresentada ao público do tribunal encarregue da avaliação psicológica de Gulliver que o inexistente se transforma em desconhecido e que o louco se transforma no homem que sobreviveu a uma viagem extraordinária no desconhecido da realidade.

Consciência da irrecuperabilidade do tempo

A obsessão pelo tempo foi substituída por um mórbido e desobediente desprovimento de vontade. A consciência nervosa, a urgência obcecada e...