domingo, 30 de agosto de 2009

Exemplo de um improvável grotesco na literatura

Invejo algumas ideias improváveis. Alias, invejo grande parte delas. Um improvável por vezes grotesco. Alias, gosto particularmente das ideias improváveis grotescas. A literatura (a Literatura) está cheia de improvável grotesco. Por vezes penso que só há literatura quando há improvável, grotesco ou não. No Pantagruel de Rabelais, Panúrgio, ao ser rejeitado por uma mulher, vinga-se esfregando o sexo de uma cadela com cio às suas roupas. Todos os cães da cidade vão se precipitar para lhe mijar em cima, na sua saia, nas suas pernas, e depois na porta da sua casa. A urina começa a formar pela rua um pequeno rio onde alguns patos vão nadar. Palavras contra a miséria da banalidade? Simplesmente palavras certamente. Por vezes basta um ou dois patos para o rasgar de uma realidade.

sábado, 22 de agosto de 2009

Metamorfoses do género: I - Porque não foi Hildegarda para a fogueira?

Era comum, na idade média, queimar-se bruxas em fogueiras públicas. Estranhamente, a bruxaria parece ter sido naquele tempo uma actividade apenas praticada por mulheres.

Hildegarda de Bingen, no século XII, afirmava receber visões de Deus [1], e dedicava-se a actividades que eram muito raramente permitidas a mulheres, como por exemplo a medicina e a teologia. É importante notar que Hildegarda vivia numa sociedade maioritariamente controlada pela Igreja, uma sociedade obviamente controlada por homens. A questão impõem-se: porque não foi Hildegarda para a fogueira? A teoria que vamos defender é que Hildegarda nunca chegou a ser, na sua sociedade, uma mulher.

Ao explicarmos como eram justificadas e permitidas estas fogueiras, explicaremos ao mesmo tempo porque Hildegarda não acabou numas delas. A pergunta que devemos fazer é: quem é que era queimado vivo? Uma mulheres ou uma bruxa? É certo que se tratavam de bruxas. Este tremendo esmagamento ontológico por parte da sociedade justificava as suas acções. Na verdade, é o sujeito que define a fogueira: se uma acto de justiça ou de barbárie. Este esmagamento ontológico pode ser observado ainda hoje em muitas ocasiões: na guerra, com o esmagamento do Homem pelo inimigo; nos tribunais, com o esmagamento do suspeito pelo culpado; ect.

Hildegarda conseguiu libertar-se do estatuto de mulher, escapando ao esmagamento ontológico que muitas outras sofreram: Hildegarda era vista como veículo de transmissão divina. Além disso, é sabido que era também misógina, o que vem reforçar a tese que se libertou propositadamente do feminino. Enquanto mulher, teria tido grandes dificuldades em fazer aceitar as suas actividades à sociedade. Hildegarda criou o seu próprio esmagamento ontológico. A mulher foi esmagada por um ser que recebia visões de Deus.

Simone de Beauvoir trata do carácter místico que as mulheres se podem adquirir: “S’il suffit souvent d’un peu de beauté e d’intelligence pour que la femme se sente revêtue d’un caractère sacré, à plus forte raison quand elle se sait l’élue de Dieu, elle se pense chargée de mission : elle prêche des doctrines incertaines, elle fonde volontiers des sectes, ce qui lui permet d’opérer, à travers les membres de la collectivité qu’elle inspire, une enivrante multiplication de sa personnalité.” [2]. E certamente como foi o caso para Hildegarda, é esta mistificação que a vai projectar, enquanto acção positiva, na sociedade. [3]

Se Hildegarda não recebeu verdadeiramente visões divinas, isto significa que terá propositadamente e engenhosamente modificado, ao olhos da socidade, a sua identidade.


[1] Cf. Scivias «Sache les voies» ou Livre des visions, 2ª ed., prés. et trad. par Pierre Monat, Paris, Cerf, 1996, p.27.
[2] Simone de Beauvoir, Le deuximème sexe, 2º vol., Gallimard, 1949, p.592.
[3] Cf. Idem, p. 593.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Memórias de guerra (1944-1945), III

O inimigo chegou na manhã de domingo pouco antes do início da missa. Grande parte dos soldados estavam feridos, cansados e esfomeados, desarmados, nos olhos o olhar de uma alma a sustentar um corpo apenas por misericórdia, a arrogância de uma convicção algures desaparecida, a convicção há seis meses atrás dentro da própria alma, nas pernas e nos braços, nos ombros que carregados de belas espingardas, o objecto imagem de uma força esmagadora, há seis meses atrás um festival, um desfile militar, hoje uma procissão fúnebre, uma subida ao calvário, se houvesse mortos um funeral, mas esses ficaram lá atrás enquanto que os vivos fugiam da mesma sorte. A aldeia e o inimigo entraram juntos na igreja. Uns rezaram para o fim da guerra, outros rezaram para o regresso da paz. Quando a missa terminou, as tropas que perseguiam o inimigo já se encontravam na praça da igreja. Dois inimigos foram capturados. Todos os outros foram metralhados num dos cantos da praça. O inimigo poderia ter escapado.

Consciência da irrecuperabilidade do tempo

A obsessão pelo tempo foi substituída por um mórbido e desobediente desprovimento de vontade. A consciência nervosa, a urgência obcecada e...