sábado, 24 de outubro de 2009

Foi em Fevereiro que a Rainha de Inglaterra desceu Portugal inteiro

Em 1957 a Rainha de Inglaterra parou em Portugal. Em 1957 o metro de Lisboa estava em construção. Quando esperamos o metro em Lisboa dirigimos a expectativa no lado direito da linha. Foram os ingleses que construíram o metro de Lisboa (os ingleses que eram já donos de Lisboa sem os lisboetas o saberem e sem o quererem saber). Haveria de ser engraçado o metro de Lisboa e o metro de Paris ambos na mesma linha, como um inglês em contra-mão no Boulevard Saint-Michel debaixo de uma noite intensa. O metro de Lisboa foi inaugurado em 1959. Para receber a Rainha de Inglaterra foi preciso tapar as obras na Avenida da Liberdade e replantar momentaneamente as árvores. Depois pintaram as folhas com uma tinta verde. Foi em Fevereiro que a Rainha de Inglaterra desceu Portugal inteiro. Ela deve ter achado curioso circular do lado errado da estrada.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Reencontros

Ao reencontrar uma velha amiga ontem na estação, desaparecida durante três anos da minha vida (ou eu desaparecido da sua), no breve e cínico instante do reencontro uma forte sensação de confrontação transcendeu o meu pensamento. Na minha viagem (que apenas agora começava) traduzi a sensação numa explicação: a confrontação, o meu presente e o meu passado, um no meu eu e o outro no seu, nos seus olhos uma memória do meu ser enquanto que eu, verdadeiramente, a soma daquela imagem com três anos de desaparecimento. O meu passado empestado nos seus olhos, inofensivo, preso na forma de uma memória, impotente frente ao espírito que o negou (e que continua a negá-lo), então rapidamente a imagem esmorece, a ideia morre transformando a confrontação numa incoerência. Como a minha velha amiga, é esta incoerência que diz: «estás diferente». O corpo intacto, completamente inalterado, como distinguir a diferença? Interessado no hipotético mecanismo da diferenciação metafísica pergunto-lhe porquê. Que poderia ter ela respondido? Que estou diferente «porque o teu presente tomou posse da imagem que eu tinha na memória.»? Eis porque a resposta se limita normalmente a uma especulação duvidosa. Mas muitas vezes é o contrário que acontece. A imagem do passado subordina o presente e a acção volta a encontrar um antigo fundamento, redefinindo momentaneamente o ser quando confrontado a um espectador do seu passado. A necessidade para manter a coerência é mais forte. Não se quer mostrar sinais de mudança, sinónimos de uma deterioração ou de um retrocesso ou até mesmo de uma traição ontológica. Tudo dependerá do valor atribuído aos momentos da nossa existência partilhados com os outros, os nossos espectadores.

A rapariga ruiva do café, se imortalizada na minha memória é talvez porque esta memória algures entre a confrontação e a coerência. A sua intemporalidade, que impossibilita qualquer relação com a minha existência, faz dela uma constante da minha realidade, ela, uma memória, a metamorfose instantânea de uma desconhecida num gesto infinito, numa inesgotável ideia estética do meu mundo.

sábado, 3 de outubro de 2009

A fonte inteligível das nossas impotências

Procuramos razões e explicações para as nossas escolhas. A ideia que elas possam surgir do nada é desconfortável e enganadora: desconfortável porque é admitir uma impotência sobre o nosso próprio ser e ao mesmo tempo negar a racionalidade que caracteriza (frequentemente) a nossa existência; enganadora porque ex nihilo nihil fit; do nada nada vem.

Ao procurarmos razões para as nossas escolhas alimentamos a ilusão do nosso controlo sobre nós mesmos e do nosso poder sobre o mundo. Acreditamos que ao entender a escolha alcançamos o nosso ser (talvez a alma, a mente, ambos ou nenhum). E se isso acontece é apenas porque existe uma pré-consideração (consciente ou inconsciente) no pensamento geral: a acção define o ser, ou simplificando na frase tantas vezes ouvida, “é aquilo que tu fazes que te define”.

É necessário esclarecer porque consideramos que a escolha e a acção podem ser legitimamente confundidas. As acções baseiam-se invariavelmente em escolhas. Uma acção involuntária é uma acção cuja escolha é ininteligível para o indivíduo.

Depois de Deus, a psicanálise é talvez a melhor invenção que o Homem produziu para alimentar a sua impotência. Mesmo quando o Homem perde o controlo, ele não deixa de saber porquê (ou porque Deus assim o quer ou porque, por exemplo, o superego está a ser reprimido por um poderoso inconsciente).

Existem então duas fontes diferentes para a justificação da impotência humana? Existem certamente muitas mais. Seja como for, Deus é talvez a única fonte universal para justificar qualquer impotência humana, ao contrário da psicanálise que apenas pode explicar uma impotência pessoal (porque é que não consigo aprender a nadar). Deus pode explicar esta mesma impotência pessoal (não consigo aprender a nadar simplesmente porque Deus assim o quer) e ao mesmo tempo explicar uma impotência extra-pessoal (porque é que não pude salvar a pessoa que estava a afogar-se; porque é que não pude prever que ia ter um acidente; porque é que não conseguimos salvar as pessoas que estavam presas na mina).

Mas de um ponto de vista racional, as impossibilidades são apenas factos (não conseguimos salvar as pessoas que estavam presas na mina porque não tínhamos meios técnicos para remover as pedras que bloqueavam o acesso) e não uma impotência humana com uma fonte pensável. Pensar que a impotência do Homem tem uma fonte é procurar uma causa, uma razão para essa impotência. Sem Deus, a impotência do Homem é uma mera impossibilidade. Sem Deus o Homem é impotente. Sem Deus o mundo não tem causa nem razão. Sem Deus o mundo é inexplicável. Mas sem Deus o mundo é verdadeiro. Ele é tal como o vemos: um mundo sem razão aparente.

Negar a impotência do Homem é alimentar a ilusão de um mundo melhor.

Se assim descobrimos a morte de Deus (como aconteceu e acontece desde o início das ciências, ou desde Nietzsche), o que acontece então à psicanálise? É ou não a psicanálise uma ciência? E a psicologia? Acreditar na psicologia não é acreditar numa natureza humana quantificável? Sim, acreditar na psicologia é acreditar numa natureza humana quantificável e relativamente uniforme. Mas esquecemos agora a psicologia (que mereceria uma bem grande discussão) para voltarmos brevemente à psicanálise. Enquanto que o Homem afasta-se cada vez mais de Deus (não me venham dizer que não), abraçando o terrível facto que as desgraças são simples factos desprovidos de uma razão ou fonte externa inteligível, o Homem continua obviamente obcecado por ele mesmo. Eis algumas actividades exclusivamente reservadas ao estudo do Homem e das suas criações: a psicologia; a psicanálise; a antropologia; a sociologia; a pedagogia; a neurologia; a economia; a história; o direito (a nova grande religião da humanidade “moderna”); a linguística; a sexologia; ect. A psicanálise e a psicologia transformaram-se, numa era agnóstica, nas únicas ciências capazes de explicar as impotências internas do Homem, sendo as externas um assunto completamente disparatado: por mais desagradável que é, um facto é apenas um facto.

Gostaria de perguntar um dia a um psicanalista se ele acredita em Deus. Não consigo aprender a nadar porque caí num poço quando era criança ou porque Deus assim o quer? Aparentemente não se pode acreditar ao mesmo tempo em Deus e na psicanálise.


(E se ele responder-me que foi Deus que me fez cair dentro do poço para eu não conseguir aprender a nadar? É provável que involuntariamente dar-lhe-ei uma chapada.)

domingo, 27 de setembro de 2009

Memórias de guerra (1944-1945), IV

Perto do final da segunda guerra mundial os russos fizeram desfilar em Moscovo cem mil soldados alemães capturados. Esfomeados propositadamente nos campos prisionais, os alemães apenas tiverem direito antes do desfile a uma sopa com grande propriedade laxativa. Atrás do humilhante desfile havia camiões cisternas para limpar a merda do chão.

domingo, 30 de agosto de 2009

Exemplo de um improvável grotesco na literatura

Invejo algumas ideias improváveis. Alias, invejo grande parte delas. Um improvável por vezes grotesco. Alias, gosto particularmente das ideias improváveis grotescas. A literatura (a Literatura) está cheia de improvável grotesco. Por vezes penso que só há literatura quando há improvável, grotesco ou não. No Pantagruel de Rabelais, Panúrgio, ao ser rejeitado por uma mulher, vinga-se esfregando o sexo de uma cadela com cio às suas roupas. Todos os cães da cidade vão se precipitar para lhe mijar em cima, na sua saia, nas suas pernas, e depois na porta da sua casa. A urina começa a formar pela rua um pequeno rio onde alguns patos vão nadar. Palavras contra a miséria da banalidade? Simplesmente palavras certamente. Por vezes basta um ou dois patos para o rasgar de uma realidade.

sábado, 22 de agosto de 2009

Metamorfoses do género: I - Porque não foi Hildegarda para a fogueira?

Era comum, na idade média, queimar-se bruxas em fogueiras públicas. Estranhamente, a bruxaria parece ter sido naquele tempo uma actividade apenas praticada por mulheres.

Hildegarda de Bingen, no século XII, afirmava receber visões de Deus [1], e dedicava-se a actividades que eram muito raramente permitidas a mulheres, como por exemplo a medicina e a teologia. É importante notar que Hildegarda vivia numa sociedade maioritariamente controlada pela Igreja, uma sociedade obviamente controlada por homens. A questão impõem-se: porque não foi Hildegarda para a fogueira? A teoria que vamos defender é que Hildegarda nunca chegou a ser, na sua sociedade, uma mulher.

Ao explicarmos como eram justificadas e permitidas estas fogueiras, explicaremos ao mesmo tempo porque Hildegarda não acabou numas delas. A pergunta que devemos fazer é: quem é que era queimado vivo? Uma mulheres ou uma bruxa? É certo que se tratavam de bruxas. Este tremendo esmagamento ontológico por parte da sociedade justificava as suas acções. Na verdade, é o sujeito que define a fogueira: se uma acto de justiça ou de barbárie. Este esmagamento ontológico pode ser observado ainda hoje em muitas ocasiões: na guerra, com o esmagamento do Homem pelo inimigo; nos tribunais, com o esmagamento do suspeito pelo culpado; ect.

Hildegarda conseguiu libertar-se do estatuto de mulher, escapando ao esmagamento ontológico que muitas outras sofreram: Hildegarda era vista como veículo de transmissão divina. Além disso, é sabido que era também misógina, o que vem reforçar a tese que se libertou propositadamente do feminino. Enquanto mulher, teria tido grandes dificuldades em fazer aceitar as suas actividades à sociedade. Hildegarda criou o seu próprio esmagamento ontológico. A mulher foi esmagada por um ser que recebia visões de Deus.

Simone de Beauvoir trata do carácter místico que as mulheres se podem adquirir: “S’il suffit souvent d’un peu de beauté e d’intelligence pour que la femme se sente revêtue d’un caractère sacré, à plus forte raison quand elle se sait l’élue de Dieu, elle se pense chargée de mission : elle prêche des doctrines incertaines, elle fonde volontiers des sectes, ce qui lui permet d’opérer, à travers les membres de la collectivité qu’elle inspire, une enivrante multiplication de sa personnalité.” [2]. E certamente como foi o caso para Hildegarda, é esta mistificação que a vai projectar, enquanto acção positiva, na sociedade. [3]

Se Hildegarda não recebeu verdadeiramente visões divinas, isto significa que terá propositadamente e engenhosamente modificado, ao olhos da socidade, a sua identidade.


[1] Cf. Scivias «Sache les voies» ou Livre des visions, 2ª ed., prés. et trad. par Pierre Monat, Paris, Cerf, 1996, p.27.
[2] Simone de Beauvoir, Le deuximème sexe, 2º vol., Gallimard, 1949, p.592.
[3] Cf. Idem, p. 593.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Memórias de guerra (1944-1945), III

O inimigo chegou na manhã de domingo pouco antes do início da missa. Grande parte dos soldados estavam feridos, cansados e esfomeados, desarmados, nos olhos o olhar de uma alma a sustentar um corpo apenas por misericórdia, a arrogância de uma convicção algures desaparecida, a convicção há seis meses atrás dentro da própria alma, nas pernas e nos braços, nos ombros que carregados de belas espingardas, o objecto imagem de uma força esmagadora, há seis meses atrás um festival, um desfile militar, hoje uma procissão fúnebre, uma subida ao calvário, se houvesse mortos um funeral, mas esses ficaram lá atrás enquanto que os vivos fugiam da mesma sorte. A aldeia e o inimigo entraram juntos na igreja. Uns rezaram para o fim da guerra, outros rezaram para o regresso da paz. Quando a missa terminou, as tropas que perseguiam o inimigo já se encontravam na praça da igreja. Dois inimigos foram capturados. Todos os outros foram metralhados num dos cantos da praça. O inimigo poderia ter escapado.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sobre o sobreviver

Se sobreviveres a uma chuva de obuses, abriga-te numa das crateras; eles nunca caem no mesmo sítio. Se sobreviveres à batalha, afasta-te dos cadáveres; a morte traz a doença. E se sobreviveres à guerra, refugia-te no Homem; ele conseguirá a paz. Se tiveres a sorte de sobreviver a estes mundos, terás de descobrir finalmente como sobreviver ao Homem, e como sobreviver à paz.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A experiência da Imperatriz

Quando um dia a Imperatriz da nossa grande nação decidiu depois de um sonho atribulado fazer organizar uma experiência, ninguém, nem mesmo os conselheiros mais próximos, puderam entender, depois da cuidadosa descrição do despacho imperial, qual poderia ser a razão de tal desejo. Eis as suas palavras: «Que seja escolhido entre os muitos órfãos da nossa nação um criança saudável com poucos dias de vida. Que seja esta criança levada para o palácio imperial, onde terá o direito a uma boa alimentação e a uma educação. Que seja à esta criança, todos os dias sem excepção, simulada a execução de um inocente. A criança não deverá saber que se trata de uma falsa execução. As simulações deverão ser mantidas em segredo.» E assim foi.

Quando a criança, agora adulta, completou os dezanove anos de idade, uma festa foi organizada no jardim do palácio. Para a ocasião mais de mil pessoas foram convidadas. No final do evento, uma execução foi organizada. Apesar das execuções serem consideradas bárbaras e inumanas, ninguém ousara levantar objecções. O jovem aniversariante foi instalado numa cadeira elevada por um pequeno pedestal de onde teria uma vista privilegiada para o evento, e de onde ele próprio seria também facilmente observado por todos os presentes. Terminada a execução, o público, horrorizado pelo terrível espectáculo, descobre ao mesmo tempo, sentado no cimo da sua cadeira, um jovem rapaz completamente indiferente a comer delicadamente o seu bolo de aniversário. Subitamente, por completo espanto de todos os presentes, o executado, supostamente atravessado por dezenas de balas, levanta-se sorrindo para o público. A multidão pensa então perceber ter-se tratado do habitual sarcástico humor negro da magnífica Imperatriz. Ao contrário de todos os outros, o aniversariante fica absolutamente espantado. A Imperatriz observa do cimo da sua varanda as reacção do jovem rapaz. Virando-se para os seus conselheiro, finalmente diz: «Senhores, o nosso povo é bom, justo e inteligente. É nas suas crianças que a barbárie, a injustiça e a estupidez potencialmente residem.» Pouco tempo depois, o jovem rapaz desapareceu.

sábado, 11 de abril de 2009

Ilusões

A finitude física do mundo confunde-se comicamente com a ilusão da sua eternidade no tempo. É óbvio que não poderemos eternamente existir na ilusão do infinito.

sábado, 28 de março de 2009

A possiblidade do utilitarismo em Aristóteles

A pergunta é simples: podemos encontrar em Aristóteles uma ideia utilitarista de bem? Sendo o termo ambíguo e cronologicamente deslocado em relação ao nosso autor, vamos em primeiro lugar introduzir ao nosso estudo o que queremos entender com utilitarismo: baseamo-nos numa concepção de utilitarismo em que o seu objectivo é garantir o maior bem do maior número possível de indivíduos. [1]

“A cidade é por natureza anterior à família e a cada um de nós, individualmente considerado; é que o todo é, necessariamente, anterior à parte” [2]. Nesta passagem, Aristóteles coloca a importância da cidade sobre a do indivíduo. À primeira vista, poderíamos imediatamente afirmar que aqui se encontra uma prova que o bem de muitos é preferível ao bem de poucos. Mas devemos perguntar em primeiro lugar se podemos igualar a cidade com a designação o maior número de indivíduos. Aristóteles complica a questão na segunda parte da citação. É que apesar de o todo ser necessariamente anterior à parte, não continua a parte a formar o todo? Não continua essa parte a ser essencial ao todo? Até que ponto se sustenta autonomamente a importância do todo? Mas Aristóteles continua: “Même si, en effet, il y a identité entre le bien de l’individu et celui de la cité, de toute façon c’est une tâche manifestement plus importante et plus parfaite d’appréhender et de sauvegarder le bien de la cité” [3]. É difícil agora negar a similitude entre a ideia de utilitarismo apresentada inicialmente. Mas a dúvida sobre a equivalência da cidade com a ideia de maior número de indivíduos mantém-se. Se assim podermos considerar a cidade, a igualizar com a ideia de maior quantidade de indivíduos, seria totalmente correcto afirmar que a ideia de bem em Aristóteles, em relação ao indivíduo e à cidade, segue uma linha de pensamento utilitarista. Se não, dificilmente o podemos fazer. O meio mais simples de responder com segurança a esta questão seria colocar ao próprio Aristóteles um dilema moral: se podermos para salvar a cidade da sua destruição torturar apenas um dos seus habitantes, o que seria correcto fazer? Isto seria então causar mal a uma das partes para bem do todo.



[1] Cf. “Utilitarisme” em: Encyclopédie philosophique universelle, PUF, 1998, p. 2685.

[2] Aristóteles, Pol., 1253a15.

[3] Aristóteles, EN, 1094b5.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A imperatriz

A imperatriz acreditava no fatalismo. Do alto da sua varanda, o mundo um jardim eterno, as fontes opulentas com as suas bocas de pedra em vómitos contínuos, a imperatriz acreditava no fatalismo e no entanto, a imperatriz não se diz fatalista. Porque já não mais acredita no fatalismo? Não pode a imperatriz acreditar no fatalismo enquanto não-fatalista? Ah, que terrível enigma meu amigo. Em primeiro lugar, não nos podemos esquecer que o sujeito da nossa divagação é nem mais nem menos do que a soberana imperatriz da nossa grande nação. Na verdade meu amigo, estamos a tratar é da nossa nação e de como traçado o seu caminho pelos vales do tempo. Se a nossa imperatriz não acreditava no fatalismo, concluímos intuitivamente pela natureza da frase que a nossa imperatriz hoje já nele acredita. E no entanto sabemos que ela não é fatalista. Antes de tentarmos avançar mais no problema e saber como possível tal afirmação, meu amigo, discutamos antes sobre o significado de tal conclusão para a nossa nação. Parece-me correcto afirmar que se acontecer à nossa nação seguir um dos árduos e difíceis caminhos pelos vales do tempo, pouco ou nada a nossa imperatriz se espantará se o sábio povo fatalista que é o nosso se enraivar com as suas governações sem no entanto a moralmente castigar. Pois bem, se lá em cima estava escrito que a nossa imperatriz seria de má temperança para conduzir nações, que bem se pode fazer senão sermos filósofos e na mais pura temperança aceitarmos este fado? E eis porque certamente optou sabiamente a imperatriz por acreditar no fatalismo. Tenho a certeza que o meu amigo já deve ter reparado que sem querer responder directamente as perguntas que corajosamente há pouco nos colocamos, vemo-nos subitamente com uma delas respondida e com a outra praticamente desvendada: sendo a imperatriz a senhora suprema da nossa nação, como poderia ela delegar esse seu supremo poder a outra entidade que senão à sua própria pessoa e atribuir a responsabilidade do governo a uma força tanto invisível como inoportuna e inconcebível? Dito por outras palavras, de que serviria o poder de uma imperatriz se ela mesma comandada por um desígnio superior e inalcançável? E eis porque certamente optou sabiamente a imperatriz por não se dizer fatalista. E ora assim temos as nossas dúvidas respondidas! Que perspicaz imperatriz a nossa meu amigo!

domingo, 1 de março de 2009

Sobre a semelhança das coisas no tempo

"Do facto de os nossos futuros passados terem sido semelhantes aos nossos passados passados não se segue que os nossos futuros futuros serão semelhantes aos nossos passados futuros, a menos que pressuponhamos que os nossos passados futuros serão semelhantes aos nossos passados passados e os nossos futuros futuros serão semelhantes aos nossos futuros passados."

Bertrand Russell

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Democracia

A democracia é acreditar que existe em cada um de nós um conhecimento a priori do bem, uma simpatia pelo bem comum, e esperar que não chova muito no dia das eleições.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sobre a razão

"A razão é, e deve ser apenas a escrava das paixões; não pode aspirar a outro papel senão o de servi-las e obedecer-lhes."

David Hume, Tratado da Natureza Humana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 482.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Os escritores, os sonhadores e os outros

É duvidoso, talvez até insultuoso insinuar que existem tipos de escritores. Toda pessoa que escreve tem certamente as suas singularidades, por vezes apenas perceptíveis no estudo exaustivo das partículas constituintes da sua escrita. É apenas por razões práticas que se divide agora estas criaturas em três grupos: os escritores; os sonhadores; os outros. Pouco há a dizer sobre os escritores. Simplesmente escrevem sobre aquilo que pensam, sobre o que imaginam, sobre aquilo que vêm, ouvem, sentem. Os sonhadores são os que escrevem a partir do interior da própria escrita. São bastante invulgares. Costumam ser inconscientes e francamente irresponsáveis, e não têm obrigatoriamente uma grande imaginação. Acreditam piamente na necessidade do sonho, do qual se alimentam grande parte das vezes inconscientemente. Os outros, como explicar os outros… são aqueles que descrevem as ondas causadas pela queda de uma minúscula pedra atirada num imenso lago sem se aperceberem realmente que foram eles que atiraram a pedra. É escrever sem se saber muito bem porquê, sem se saber muito bem o quê, para depois descobrir nas muitas frases escritas belezas e sentidos escondidos até para o próprio autor. É construir um mundo inteiro a partir de um único não-pensamento vindo de não sei onde. É duvidar constantemente do caminho que se está a construir.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Sur l’Homme et la Nature

Ici, ce que je vois, ce n’est pas une tempête dans une ville, mais une ville dans une tempête.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Casos lógicos derivados da existência de Deus, I

Quando o Homem se pergunta pelo porquê da sua existência, em nada nesta sua dúvida de extraordinário encontramos. Parece ser uma consequência natural da sua ontologia. Quando Deus se pergunta pelo porquê da sua existência, seguindo a ideia mais generalizada de Deus no nosso contexto cultural, o Universo teme pela sua existência. Se o caro leitor for um católico afirmado, aconselho-o vivamente a rezar para que Deus não se preocupe muito com estas questões filosóficas existencialistas. Se for agnóstico, aconselho-o a procurar algum sossego na teoria que Deus, se ele existir, é completamente analfabeto. Se for ateu, faça de conta que se sente um pouco preocupado com toda esta situação para parecer minimamente interessado com a filosofia do problema.

Consciência da irrecuperabilidade do tempo

A obsessão pelo tempo foi substituída por um mórbido e desobediente desprovimento de vontade. A consciência nervosa, a urgência obcecada e...