segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Memórias de guerra (1944-1945), II

A fila continuou a crescer. Ela era agora do tamanho de toda a rua. É apenas por milagre, bem no meio dos restos de dois pequenos prédios burgueses, intacta, uma fonte, e ao seu lado, meio enterrado o obus que não explodiu. Ao chegar a noite fizeram-se sete grandes fogueiras. A primeira iluminava a fonte e o estreito caminho improvisado entre os escombros que levava à torneira. Ardia-se nela partes da antiga escadaria de um dos prédios. A segunda fogueira era alimentada por portas e prateleiras feitas em carvalho. Eram pesadas e difíceis de transportar. Uma mulher exageradamente vestida tentava com uma das mão arrastar uma imensa porta pela maçaneta e com a outra segurar o filho que parecia cantar gritos. A terceira iluminava e aquecia o meio de fila. E como nas outras fogueiras, um estranho ritual iniciático. Tímidas, de oferenda na mão as pessoas aproximavam-se do fogo e alimentavam-no. Depois de conquistarem o pequeno lugar à volta da chama, pausavam a garrafa entra os pés, estendiam os braços e viravam as palmas das mãos sujas na direcção do calor. A fogueira alimentava-os de volta. Sobre a quarta fogueira apenas sei que queimava arquivos que esquecidos ou abandonados pelos funcionários de um banco.

Ao descer a rua apercebi-me assustado que eu era o único homem digno desse nome. Os outros homens, os não-homens, crianças ou jovens adolescentes, velhos marrecos ou doentes, enfermos ou mutilados, talvez dois ou três desertores assustados e uns quantos loucos. Senti-me homem. Involuntariamente imaginei-me por um breve momento como que o pai desta imensa família assustada, cansada, faminta, desesperada no frio da noite à espera de um pouco de água limpa para lavar as mãos. Dei meia volta e voltei ao meu lugar.

A quinta fogueira era a maior de todas. Queimava caixões. Apesar da sua fachada ter completamente desaparecido, conseguia-se identificar a funerária pela grande cruz que irredutível numa das paredes laterais. Em grupos de quarto, como nas procissões, as mulheres num repetitivo caminho entre o armazém e o crematório, o fúnebre andor segurado pelas pegas do lado, a quinta fogueira a maior de todas, a que queimava as casas dos mortos, as casas de todos nós.

Havia ao lado da sexta fogueira um entreposto de têxteis. Obviamente, há muito que ele já tinha sido saqueado em nome da sobrevivência e da oportunidade. No entanto, na grande parte do entreposto que tinha escapado aos bombardeamentos muitas caixas ainda se mantinham intactas. Conhecendo-se o conteúdo é fácil perceber porquê. Seria uma loucura andar por aí vestido com o casaco de um uniforme, seja ele de que armada ou de que nação. O perigo dos espiões e dos atiradores furtivos não compensa de forma alguma o luxo de não se ter frio. Ironia do destino, queimamos os casacos que supostamente iram proteger do frio os homens que eram supostos proteger-nos.

Quando aqui cheguei a sétima fogueira ainda não existia. A fila cresceu de tal forma depois da sexta que já era difícil ver-se seja o que for, e o frio começava a ser insuportável. As pessoas começavam a amontoar as poucas coisas que encontravam. Do outro lado da rua, um grupo de velhos tinham encontrado um piano dentro de um café completamente destruído. É apenas por milagre, intacto, o piano que coberto de pó aparentemente em perfeito estado, e pelo som das algumas notas tocadas na ânsia do transporte atribulado aparentemente ainda afinado. Era espantoso ninguém reparar que se tratava de um milagre, desesperante ninguém perceber o milagre que é haver dois milagres exactamente na mesma rua. Olho sem saber o que fazer. De um lado uma gigante e paciente peregrinação, e do outro uma apresada preparação para uma injusta cremação. De alguma forma decidi que deveria impedir tal injustiça, impedir tal blasfémia contra aquilo que achei ser um desígnio do universo. Na minha divina tentativa alguém bateu-me com um pedaço de madeira e caí no chão. Enquanto que as pessoas assistiam ao nascimento da sétima fogueira, aproximaste-te e ajudaste-me. Lembras-te? Afastamo-nos da fogueira, abraçamo-nos para mantermo-nos quentes, e ao longe ficamos tristemente a ver o piano a desaparecer pelas chamas. O resto da história já a sabes. Pouco tempo depois do piano desaparecer totalmente nas chamas da fogueira o obus rebentou. Pouco tempo depois começou a chover.

Consciência da irrecuperabilidade do tempo

A obsessão pelo tempo foi substituída por um mórbido e desobediente desprovimento de vontade. A consciência nervosa, a urgência obcecada e...