segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Excerto de: Discurso para a paz

Transmitir a globalidade do mundo ao próprio mundo. Contar aos seus habitantes as histórias dos seus habitantes. Mostrar a multiplicidade da nossa realidade à nossa realidade. Fazer entender o todo à cada parte desse mesmo. Ter a percepção do tudo em cada um dos nossos nadas. Sermos universais para o universal poder ser restrito em harmonia. Eis o trabalho de um bom ser humano.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Memórias de guerra (1944-1945), II

A fila continuou a crescer. Ela era agora do tamanho de toda a rua. É apenas por milagre, bem no meio dos restos de dois pequenos prédios burgueses, intacta, uma fonte, e ao seu lado, meio enterrado o obus que não explodiu. Ao chegar a noite fizeram-se sete grandes fogueiras. A primeira iluminava a fonte e o estreito caminho improvisado entre os escombros que levava à torneira. Ardia-se nela partes da antiga escadaria de um dos prédios. A segunda fogueira era alimentada por portas e prateleiras feitas em carvalho. Eram pesadas e difíceis de transportar. Uma mulher exageradamente vestida tentava com uma das mão arrastar uma imensa porta pela maçaneta e com a outra segurar o filho que parecia cantar gritos. A terceira iluminava e aquecia o meio de fila. E como nas outras fogueiras, um estranho ritual iniciático. Tímidas, de oferenda na mão as pessoas aproximavam-se do fogo e alimentavam-no. Depois de conquistarem o pequeno lugar à volta da chama, pausavam a garrafa entra os pés, estendiam os braços e viravam as palmas das mãos sujas na direcção do calor. A fogueira alimentava-os de volta. Sobre a quarta fogueira apenas sei que queimava arquivos que esquecidos ou abandonados pelos funcionários de um banco.

Ao descer a rua apercebi-me assustado que eu era o único homem digno desse nome. Os outros homens, os não-homens, crianças ou jovens adolescentes, velhos marrecos ou doentes, enfermos ou mutilados, talvez dois ou três desertores assustados e uns quantos loucos. Senti-me homem. Involuntariamente imaginei-me por um breve momento como que o pai desta imensa família assustada, cansada, faminta, desesperada no frio da noite à espera de um pouco de água limpa para lavar as mãos. Dei meia volta e voltei ao meu lugar.

A quinta fogueira era a maior de todas. Queimava caixões. Apesar da sua fachada ter completamente desaparecido, conseguia-se identificar a funerária pela grande cruz que irredutível numa das paredes laterais. Em grupos de quarto, como nas procissões, as mulheres num repetitivo caminho entre o armazém e o crematório, o fúnebre andor segurado pelas pegas do lado, a quinta fogueira a maior de todas, a que queimava as casas dos mortos, as casas de todos nós.

Havia ao lado da sexta fogueira um entreposto de têxteis. Obviamente, há muito que ele já tinha sido saqueado em nome da sobrevivência e da oportunidade. No entanto, na grande parte do entreposto que tinha escapado aos bombardeamentos muitas caixas ainda se mantinham intactas. Conhecendo-se o conteúdo é fácil perceber porquê. Seria uma loucura andar por aí vestido com o casaco de um uniforme, seja ele de que armada ou de que nação. O perigo dos espiões e dos atiradores furtivos não compensa de forma alguma o luxo de não se ter frio. Ironia do destino, queimamos os casacos que supostamente iram proteger do frio os homens que eram supostos proteger-nos.

Quando aqui cheguei a sétima fogueira ainda não existia. A fila cresceu de tal forma depois da sexta que já era difícil ver-se seja o que for, e o frio começava a ser insuportável. As pessoas começavam a amontoar as poucas coisas que encontravam. Do outro lado da rua, um grupo de velhos tinham encontrado um piano dentro de um café completamente destruído. É apenas por milagre, intacto, o piano que coberto de pó aparentemente em perfeito estado, e pelo som das algumas notas tocadas na ânsia do transporte atribulado aparentemente ainda afinado. Era espantoso ninguém reparar que se tratava de um milagre, desesperante ninguém perceber o milagre que é haver dois milagres exactamente na mesma rua. Olho sem saber o que fazer. De um lado uma gigante e paciente peregrinação, e do outro uma apresada preparação para uma injusta cremação. De alguma forma decidi que deveria impedir tal injustiça, impedir tal blasfémia contra aquilo que achei ser um desígnio do universo. Na minha divina tentativa alguém bateu-me com um pedaço de madeira e caí no chão. Enquanto que as pessoas assistiam ao nascimento da sétima fogueira, aproximaste-te e ajudaste-me. Lembras-te? Afastamo-nos da fogueira, abraçamo-nos para mantermo-nos quentes, e ao longe ficamos tristemente a ver o piano a desaparecer pelas chamas. O resto da história já a sabes. Pouco tempo depois do piano desaparecer totalmente nas chamas da fogueira o obus rebentou. Pouco tempo depois começou a chover.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Está tudo louco por Facebook

A vossa filha de 20 anos, acalorada como para um encontro amoroso precipita-se todas as manhãs para o seu computador. O vosso jovem colega, atento a uma agitação suspeita fixa o olhar ao ecrã balbuciando uma espécie de fórmula esotérica: «Fesse Bouc» [Facebook; é mais conhecido em Portugal um similar, o HI5]. Ultimamente, alguma coisa se tem passado na Internet: o crescimento de uma ceita da qual apenas conseguiu reter a palavra mágica. Diga «Facebook»: é a palavra em inglês para trombinoscópio. Mas não tenha medo. Ide ver. De qualquer forma, dentro de algumas semanas será a vossa vez. Uma mensagem aparecerá na caixa de entrada do vosso e-mail: «Hi, I invited you as a friend on Facebook.» E para vós também, será o espanto.

Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, profetisa que dentro de cinco anos toda a humanidade – pelo menos a que tem acesso a um computador – estará inscrita na sua rede comunitária. Pela velocidade vertiginosa a que esta já se alastrou pelo mundo, ele bem pode ter razão. Desde Janeiro, 200 000 novas inscrições são todos os dias feitas no Facebook, que conta agora 49 milhões de adeptos. Criado em 2004 por um estudante de Harvard, este trombinoscópio virtual é no início reservado aos alunos deste estabelecimento para depois abrir-se a todos os estudantes de grandes escolas ou de universidades. Em Setembro de 2006, a barreira elitista é levantada: a rede é acessível a todos os internautas. A história cresce. Dotado de uma viralidade demoníaca, Facebook dispersa-se como um jogo de dominó pelo planeta. Apesar da rede ainda ser anglófona, ela propaga-se a grande velocidade há já alguns meses pelo Hexágono [França].

Alias, está feito, está lá. A inscrição é de uma simplicidade infantil. Colocou online um perfil básico – nome, data de nascimento, fotografia –, o suficiente para o deixar todo inchado como que em frente do seu duplo virtual. Que fazer agora? O que é suposto acontecer neste universo de uma pobreza visual preocupante? Está praticamente a desconectar-se, bastante desiludido, quando Facebook vos propõe passar a pente fino a agenda da vossa caixa de email. É possível, mas pouco provável: os vossos contactos são pessoas sérias. Alguns segundos de espera, e é a estupefacção. Fulano está. Beltrão também. E Coiso, que nunca teria imaginado capaz de tal infantilidade, ostenta já orgulhosamente os seus 75 amigos. E não quer acreditar nos seus olhos, mas é bem o vosso austero vizinho de escritório em fotografia no vosso ecrã, alegre, proclamando estar «interested in» tequila e pequenas morenas. Você clica no seu perfil, e descobre que ontem às 15h30, precisamente quando o esperava na reunião, este palerma estava a «become friend» com a bonita operadora telefónica, ela também no Facebook. Espreita os amigos de Beltrão e sobressalta ao descobrir que ele conhece duas das vossas antigas amigas. Entusiasma-se. Procura amigos de infância, antigos amores. E encontra muitos. Cada vez que o computador se mete a investigar para si, é a mesma pequena subida da adrenalina. Então é o riso ao descobrir a velha tia que esta amiga do quinto ano se tornou. Ou a emoção: ele ou ela, há 15 anos fora da vossa existência, está lá, no ecrã, a distância de um clique. Facebook propõe-vos cumprimenta-lo discretamente, ou até dirigir um «friend request» – o famoso «Hi, I invited you as a friend on Facebook» – que o destinatário é livre de aceitar ou não. Já entrou no assunto. Não consegue parar.

«Facebook é completamente viciante, diz Amaury de Buchet, do gabinete de conselho FaberNovel, autora de um estudo sobre o fenómeno. O problema é que as pessoas o utilizam durante as horas de trabalho, ao ponto que nos Estados Unidos, as empresas, preocupadas, começam a limitar o seu acesso aos seus empregado.» De onde vem este vício? Ele vem do facto, desde as primeiras consultações, de o sujeito mais associal do planeta conseguir criar conexões: ele se aperceberá que o filho da sua prima é o namorado da sua colega ou que o seu velho amigo Gérard conhece a irmã da sua ex-mulher. E ele ficará espantado. Porque é arborescente, Facebook é a tradução virtual perfeita da expressão «it’s a small world». No Facebook, o mundo é pequeno, muito pequeno. Parece estúpido, mas é fascinante. «Por de trás do desenvolvimento destas redes comunitárias, acrescenta Amaury de Buchet, encontramos a teoria dos seis graus. A ideia um pouco dúbia que nunca existe mais do que seis graus de conexão entre dois seres humanos. A grande fantasia de Mark Zuckerberg é, na realidade, de traduzir a rede de cada indivíduo por um social graph, uma espécie de representação material, informática, de todas as ligações sociais, de todas as suas conexões com outros indivíduos.» Já se adivinha a grande fantasia. Todos estes gráficos individuais conectados entre si, não fazendo mais do que apenas um gigantesco esquema planetário, um género de geometria mundial da humanidade.

É vertiginoso. Mas ainda não lá chegamos. Por mais, existe um senão neste excitante «small world». A medida que descobrirá quem são os amigos dos vossos amigos e que a sua rede pessoal ganhará tamanho, tropeçará ao encontrar informações que não lhe eram nada destinadas. Assim descobrirá incrédulo que o seu filho está «engaged to» – comprometido com – uma sombra desconhecida sem nada ter avisado. Ou que a nova recruta da empresa, que expôs no seu perfil as fotografias de família do seu recente casamento, é na verdade a sobrinha-neta do patrão. «Facebook é ainda muito recente, e os utilizadores, sobre tudo quando não são anglófonos, ainda estão longe de dominar os critérios de confidencialidade», explica Amaury de Buchet. Na verdade, grande parte imagina que apenas os internautas que aceitaram como «friends» é que têm acesso ao seu perfil, no qual divulgam informações pessoais. Eles muitas vezes ignoram que aderindo a um dos muitos grupos propostos por Facebook – o de, por exemplo, da sua empresa ou da sua antiga escola – eles permitem a todos os utilizadores desse grupo de consultar livremente o seu perfil. Preencheu ingenuamente os critérios geográficos e pertence agora ao grupo França? Prepara-se bem: a não ser que tenha pensado em restringir o acesso, uns 250 000 outros totós do vosso género podem se divertir tranquilamente com as fotos e as pequenas mensagens que pensava serem privadas. É certamente por causa deste tipo de erros que os meninos das famílias Seillière, Bouygues, Fillon e outros Bolloré caíram na armadilha. Há algumas semanas, o jornal Capital reproduzia o conteúdo mal protegido dos seus perfis: fotografias de noitadas embriagadas e de férias em roupas ligeiras. Desde então, grande parte dos «filhos e filhas de», incontáveis no Facebook, foram prudentemente clicar na opção «privacy», no canto superior direito do ecrã, e restringiram o acesso o mais que puderam.

São eles, «filhos e filhas de», os meninos das grandes moradas, das grandes escolas ou novos diplomados bem colocados que pelo momento tomem conta da rede francesa. É lógico, pois Facebook era-lhes originalmente destinado. Faça o teste com aqueles que conhece: um indivíduo entre 18 e 30 anos, que tenha feito estudos superiores e que ainda não esteja no Facebook é aquilo que podemos chamar de rebelde. Os outros criaram nele uma espécie de universo paralelo cor-de-rosa, onde cada um rivaliza o número de amigos e exibe a sua juventude dourada, a sua beleza física, as suas viagens e as suas festas alcoolizadas. «Temos belas vidas, belas roupas, belas festas, então mostramo-las, já que é belo de se ver», assume Florence, 23 anos. Gigantesco espelho que reenvia a estes jovens um reflexo sublimado deles mesmos. Para esta geração que se está a construir profissionalmente, os «friend request» não são sempre desinteressados. Franck, 28 anos, admite que teve mais interesse em contactar este antigo amigo da escola primária quando soube que era diplomado pelo HEC [reputada escola de estudos comercias situada em Paris]. «Estou a tentar mudar de emprego, ele está certamente bem colocado, pode servir», diz ele. Imenso recreio onde todos estes jovens adultos rivalizam no número de amigos e descarregam vexações e desamores espantosamente infantis. «Quando um ex-namorado vos coloca na sua lista negra, ou seja quando ele vos impede formalmente de o contactar, ou mesmo quando um amigo vos dá apenas um acesso limitado ao seu perfil, é duro», diz Charlotte, já com 29 anos.

E assim chega a terceira fase Facebook. Depois da decepção do primeiro contacto e do vício doentio, é agora o tempo do declínio. É brutal. Reencontrou todos os seus pequenos amigos da primária. Trocou fotografias, anedotas, rumores, aderiu a grupos, contactou amigos de amigos e chegou a conclusão final muito deprimente que o mundo, o vosso mundo, é na realidade minúsculo. Observou esta geração dos 18-30 anos que parece delapidar a sua energia a exibir os detalhes mais insignificantes da sua existência. Viu o seu primo mais novo de 18 anos, apesar de ostentar 300 amigos virtuais, passar as suas férias sozinho como um rato em casa do papá e da mamã. E é um sentimento de vazio intersideral que se apoderou da sua garganta. «O sucesso considerável de um sítio como Facebook é um sinónimo das solidões, dos anonimatos ordinários e dos desertos de comunicação das nossas sociedades contemporâneas», diz o sociólogo Hervé Fisher, fundador do Observatório Internacional do Digital [OINM – Observatoire International du Numérique]. Está decido, vai parar. Pelo menos, as soon as possible.


Violaine de Montclot, “Ils sont tous dingues de Facebook”, Le Point, 1833 (Novembro 2007), pp. 76-79.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Definição de altruísmo

O altruísmo é um homem que cai dum décimo andar e que a gritar se mete a avisar as pessoas que lá em baixo para fazerem atenção.

domingo, 18 de maio de 2008

Memórias de guerra (1944-1945)

O rapaz mesmo a sua frente, ela sentada na cama começava a tirar a roupa. Com cuidado, despe os braços das frágeis mangas, tão frágeis parecem as finas mangas da camisola, a lã tão quentinha no seu corpo, devagar pela cabeça, o seu liso longo cabelo cor de negro através do colarinho, no silêncio absoluto do quarto desarrumado pela rápida ocupação, tão profundo este silêncio que acho poder ouvir o seu coração, de tanto bater o seu coração que tenho a impressão de ter perdido o meu, tão caladinho, o rapaz mesmo a sua frente, o momento mais erótico da sua vida num silêncio tão absurdo como impossível, morteiros mudos, sirenes mortas, o céu tão limpo de aviões que quase consigo apesar da luz do Sol contar todas as estrelas da noite.

Consciência da irrecuperabilidade do tempo

A obsessão pelo tempo foi substituída por um mórbido e desobediente desprovimento de vontade. A consciência nervosa, a urgência obcecada e...